OEA pode obrigar países a cumprirem sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos
O Fórum Brasileiro de Direitos Humanos - FBDH, que foi instituído, entre outros motivos, pela necessidade de acompanhamento da denúncia do MOSAP, apresentada à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, divulgou documento em que o advogado especializado em Direito Internacional, Luiz Afonso Costa de Medeiros, explica detalhadamente a soberania do poder de uma decisão da Corte Interamericana sobre o Estado brasileiro.O procedimento instaurado tem por finalidade sustar o desconto da contribuição previdenciária dos proventos dos servidores aposentados e pensionistas.A Implementação das Sentenças da Corte Interamericana de Direitos Humanos no Brasil Ao aprovar mediante o Decreto Legislativo Nº. 89, de 3 de dezembro de 1988, o reconhecimento internacional da Corte Interamericana de Direitos Humanos – em exercício pleno de soberania, calcado, em especial, na previsão constitucional do art. 7º do Ato das Disposições Transitórias da Constituição Federal - o Brasil assume obrigações e passa a sujeitar-se à jurisdição da Corte Interamericana, assegurando, por conseqüência, o cumprimento de suas sentenças. Não faria nenhum sentido, de certo, ratificar a Convenção Americana sobre Direitos Humanos sem aceitar os mecanismos que garantem os direitos consagrados no instrumento de jus gentium. A partir deste ato soberano, então, o Estado brasileiro pode ser sujeito passivo das demandas propostas perante a Corte, podendo, nessa condição, ser processado, julgado e condenado.2. À luz dessa realidade, devem os agentes políticos dos três Poderes da República ter em consideração as manifestações da Corte Interamericana ao desempenhar suas missões constitucionais, sob pena de levarem o país à responsabilidade internacional. A internacionalização dos direitos humanos que, em síntese, se traduz por sua proteção internacional, põe fim à competência exclusiva do Estado em sede de direitos humanos e traz o indivíduo para o eixo da normatividade internacional. Desse modo, ao reconhecer a jurisdição da Corte Interamericana e ao colaborar para o fortalecimento da internacionalização dos Direitos Humanos, o Estado brasileiro não poderá alegar, contraditoriamente, no âmbito de ação em que seja parte: o “enfraquecimento e desestabilização das instâncias internas”; o “uso da fórmula da quarta instância”; o “amesquinhamento de sua soberania nacional”; o “respeito à coisa julgada” e muito menos a “reserva de domínio” como tem sido tentado não raras vezes, mas sem êxito, por alguns Estados-partes da Convenção Americana em processos em que foram julgados e condenados pela Corte Interamericana.3. No que tange às escusas relativamente ao “enfraquecimento e desestabilização das instâncias internas”, ao “uso da fórmula da quarta instância” e ao “respeito à coisa julgada”, que poderiam ser invocadas pelo Estado brasileiro no contexto da Denúncia apresentada pelo Instituto MOSAP – Movimento dos Servidores Públicos Aposentados e Pensionistas - junto ao Sistema Interamericano de Direitos Humanos, em que os aposentados e pensionistas do setor público postulam pela cessação da taxação de 11% sobre seus proventos como forma de contribuição previdenciária e que, ao mesmo tempo, contraria decisão do STF, por consubstanciar cabal violação à Convenção Americana - vale sublinhar que o ente a ser imputado internacionalmente será o Estado brasileiro e não seus Poderes Executivo, Judiciário ou Legislativo, embora todos possam ter concorrido para a ilicitude. O Direito Internacional atribui responsabilidade internacional ao Estado diante de fato imputável ao Estado, não importando se sua origem reside em ato de agente público ou de particular – se pública ou privada.4. Muito embora as entidades incumbidas de apreciar a responsabilidade internacional do Estado recebam comumente a denominação de Tribunal ou de Corte, a exemplo da Corte Interamericana, é inegável sua natureza jurídica de Direito Internacional. A Corte é uma organização judicial autônoma, estabelecida pela Convenção Americana (acordo internacional), como meio de proteção dos direitos que materializa e cuja missão é a interpretação e a aplicação da Convenção. Possui, conseqüentemente, personalidade jurídica internacional, o que lhe impõe relacionar-se apenas com sujeitos de Direito Internacional. Não é possível, portanto, o estabelecimento de hierarquia entre um tribunal local e a Corte – órgão judicial autônomo intergovernamental. Logo, quando julgar a Denúncia MOSAP, responsabilizando internacionalmente o Estado brasileiro, não se sujeitará às limitações de um tribunal local (de respeito à coisa julgada local), pois se sujeita apenas ao Direito Internacional. Suas sentenças - por serem de cunho internacional - não encontram nenhum limite de Direito Interno, pois não se vinculam a nenhum Estado em particular; geram, aliás, todos os seus efeitos, de imediato, ao Estado-parte a que se destinam. No caso do Brasil, têm eficácia previamente aceita na medida em que o país reconheceu sua competência.5. Por emanarem as sentenças da Corte Interamericana (com efeito de coisa julgada inter partes, vinculando as partes em litígio) de uma esfera judicial internacional - cujo fundamento se encontra no Direito Convencional, diferentemente, por conseguinte, da esfera local – fica impedido que exceções processuais de Direito Interno possam ser utilizadas para tolher o exercício da jurisdição internacional. As instâncias internacionais não reformam a decisão interna, apenas condenam o Estado infrator a reparar o dano causado. Ademais, o próprio instituto da coisa julgada, argumento da pretensa imutabilidade das decisões internas, impede sua utilização em sede internacional, já que não há nem coincidência nem identidade entre os elementos da ação interna e internacional, isto é: partes; pedido e causa de pedir. Na jurisdição internacional as partes e o objeto da controvérsia diferem da jurisdição interna. Enquanto nesta se avalia se houve transgressão da lei interna por um indivíduo, naquela se aprecia se o Estado violou suas obrigações internacionais, tendo-se o Direito Internacional como nova causa de pedir. Esta situação pode muito bem gerar decisão internacional oposta à decisão judicial interna.6. O fato de a Corte Interamericana atuar em esfera judicial internacional e o STF, em esfera local – sem nenhuma conexão que permita estabelecer-se hierarquia entre ambos - faz com que uma decisão da Corte não reforme uma decisão do Supremo, mas condene o Estado brasileiro a reparar o dano causado. Por essa razão, a Corte tem refutado a exceção preliminar de coisa julgada, não raramente, apresentada pelos Estados-partes nos autos dos processos que lhes são movidos com vistas a imputar-lhes condutas violatórias de dispositivos normativos internacionais de direitos humanos, quando se referem a decisões judiciais contrárias aos direitos humanos. A Corte tem descartado totalmente as “sentenças revestidas do manto da imutabilidade” - transitada em julgado em jurisdições nacionais, à medida que vem firmando o entendimento de que não há identidades entre demandas – locais e internacionais; não sendo possível, portanto, a alegação de res judicata. Se não há identidade das demandas não há coisa julgada. Além do mais, o órgão internacional que apura a responsabilidade internacional do Estado não possui o caráter de um tribunal de apelação ou cassação, contra o qual se poderá opor a exceção de coisa julgada. Poder-se-ia até mesmo cogitar da adoção de um recurso de nulidade da sentença interna ou da ampliação dos fundamentos de sua rescisão. Por não haver, contudo, nem relação nem hierarquia entre os tribunais nacionais e internacionais, não há, conseqüentemente, nem reforma nem cassação de sentença; o que não justificaria, por conseguinte, nem a nulidade nem a rescisão da sentença interna.7. A Corte simplesmente condena o Estado infrator a reparar dano causado, em matéria de Direito Internacional de Direitos Humanos. A despeito disto, as Supremas Cortes de cada Estado-parte continuam supremas e proferem a última decisão em jurisdição local acerca da violação ou não de Direitos Humanos, conforme determinam suas Constituições. E suas supremacias permanecem mesmo quando proferem sentenças violatórias de Direito Internacional, visto que as instâncias do controle internacional não pertencem à estrutura judicial do Direito interno, restringindo-se, tão-somente, ao exame da observância das obrigações internacionais do Estado. Mesmo quando uma decisão judicial tida como violatória de Direitos Humanos provém de instância local máxima, não se estabelecem vínculos de subordinação entre o órgão judicial nacional que proferiu o veredictum e o órgão judicial internacional que prolatou decisão oposta. A Corte Interamericana - enquanto organismo internacional, dotada de personalidade jurídica internacional - interage com o Estado brasileiro - também sujeito de Direito internacional, a cuja jurisdição se submete, por ato de soberania - e não com os seus tribunais, sejam quais forem.8. Dessarte, como decorrência da Denúncia MOSAP, a decisão judicial brasileira atinente à questão será atacada não como ato judicial - sujeito à impugnação e revisão, mas como mero fato a ser submetido à análise à luz dos acordos e tratados internacionais pertinentes, para posterior responsabilização internacional do Estado brasileiro, por violação de normas de Direito Internacional dos Direitos Humanos. O Brasil, na condição de partícipe da instauração da Corte Interamericana e ao submeter-se à sua jurisdição, por ato soberano, não colaborou com a institucionalização de um Tribunal superior ao STF, razão por que, face ao ordenamento jurídico interno, as sentenças da Corte prescindem da rescisão ou mesmo da declaração de nulidade de sentença judicial interna, mesmo quando se tratarem de decisão final exarada pelo STF. Por outro lado, face à inexistência de hierarquia funcional entre os tribunais internos e internacionais, a sentença internacional do ponto de vista formal não rescinde nem reforma ato judicial interno. A própria definição de Direito Internacional dos Direitos Humanos, ao adotar a primazia do indivíduo, convertendo-o em sujeito de direito internacional, buscando a tutela efetiva dos direitos fundamentais, indica a tônica da processualística necessária à consecução de suas finalidades, rechaçando, assim, todo e qualquer expediente processual com vistas a procrastinar no tempo o cumprimento da prestação jurisdicional.9. O conceito de Direito Internacional dos Direitos Humanos, da lavra de Dunchee de Abrantes, assim como os de tantos outros doutrinadores de igual relevância, ao pôr o indivíduo no centro das normas internacionais, afasta, por seu turno, qualquer possibilidade de os Estados eximirem-se de responsabilidade sob justificativas cujo sentido se perdeu no tempo: “Direito Internacional dos Direitos Humanos é o conjunto de normas substantivas e adjetivas de Direito Internacional, que tem por finalidade assegurar ao indivíduo, de qualquer nacionalidade, inclusive apátrida, e independente da jurisdição em que se encontrem, os meios de defesa contra os abusos e desvios de poder praticados por qualquer Estado e a correspondente reparação quando não for possível corrigir a lesão.”10. Nesse sentido, o sistema da Convenção Americana vem ao encontro dessas assertivas, à medida que abarca importante rol de direitos humanos, sendo superior mesmo ao do sistema da Organização dos Estados Americanos (OEA), regido pela Carta da OEA e pela Declaração Americana. Instaura, de outro ângulo, um mecanismo judicial próprio e leva os Estados-partes a reconhecerem a Corte Interamericana, como se verifica no caso brasileiro. Em seu art. 1.1, a Convenção prescreve ser o Estado obrigado a zelar pelo respeito aos direitos humanos reconhecidos e a garantir o exercício dos mesmos por todos aqueles sujeitos à sua jurisdição. É essa obrigação de respeito o primeiro elemento da futura responsabilização internacional do Estado transgressor. Consubstancia-se, assim, uma obrigação de não fazer, que se refere à limitação do poder público face aos direitos do indivíduo. Para garantir, entretanto, o exercício dos direitos humanos, o Estado contrai uma obrigação de fazer, que consiste no compromisso de munir-se de estruturas capazes de prevenir, investigar e punir toda violação de direitos humanos – pública ou privada. Deste comando emerge, enfim, reiteradamente, a responsabilidade internacional do Estado.11. Materializa-se, então, no Sistema Judicial Interamericano o dever de o Estado cumprir integralmente a sentença da Corte, conforme art. 68.1 da Convenção, cuja sentença na parte relativa à pecúnia (não se vai tratar aqui de execução de obrigação extrapecuniária) obedece ao processo interno de execução de sentença contra o Estado - a regra local de execução de sentença judicial contra a Fazenda Pública. A execução por quantia certa contra o Estado, no Brasil, rege-se pelo art.100 da Constituição Federal (CF) e pelos arts. 730 e 731 do Código de Processo Civil (CPC). Trata-se de execução com base em título executivo judicial (sentença transitada em julgado). Assim, a sentença internacional da Corte Interamericana - de caráter inapelável, é um novo tipo de sentença judicial em que repousa um título executivo. Como o art. 484 do CPC admite a execução de sentença estrangeira, extraída de autos de homologação, não é estranha à tradição brasileira a execução de sentença não proveniente de juiz nacional. A homologação pelo STF de sentença estrangeira visa à recepção de decisão provinda de outro Estado. 12. A natureza da sentença judicial internacional, todavia, difere da natureza da sentença estrangeira. Em especial as sentenças da Corte Interamericana, cuja natureza é de decisão de organismo internacional, não encontrando nenhuma identidade com sentença oriunda de Estado estrangeiro. Diante disso, não cabe a homologação de sentença internacional no ordenamento jurídico brasileiro, sob pena de violar-se a Constituição, que estabelece limite às competências do Supremo, ao enumerá-las no art. 102, I - verdadeiro numerus clausus, sem possibilidade de ampliação. Não se aplica, portanto, às sentenças da Corte Interamericana a homologação de sentença estrangeira; posição pacificada tanto na doutrina, como na jurisprudência do próprio STF. Agregam-se a isto os objetivos da Convenção Americana, que obrigam a busca de soluções céleres e simplificadas em prol da vítima de direitos humanos, não cabendo, portando, maiores delongas.13. Assim, em caso de execução de sentença da Corte Interamericana, por não ter sido cumprida sponte propria pelo Estado, deve-se garantir à vítima o ressarcimento, com o mínimo de ônus, pela via judicial. No Brasil, compete ao juiz de 1ª instância, do foro da vítima, executar, em analogia com o art. 484 do CPC, a sentença internacional, com a celeridade requerida pela Convenção Americana. Desse modo, nem a existência da “ordem do precatório” constante do art. 100 da Constituição Federal pode retardar demasiadamente a reparação pecuniária de violação de direitos humanos. Diante da natureza de cunho indenizatório de uma sentença da Corte Interamericana, deve-se considerá-la um débito de natureza alimentícia, estabelecendo-se, assim, uma ordem própria para seu pagamento. Desse modo, ao executar-se sentença favorável à causa MOSAP - cujo objeto é a cessação da taxação dos 11% a incidir sobre os proventos dos funcionários públicos aposentados e pensionistas brasileiros, acrescido de juros, correção e indenização por danos morais e materiais, considerados como créditos de natureza alimentícia - a ordem seria facilmente estabelecida diante do art. 100 CF, sobretudo, pelo fato de consagrar serem débitos de natureza alimentícia aqueles decorrentes de salários, vencimentos, proventos, pensões e suas complementações, benefícios previdenciários e indenizações por morte ou invalidez, fundadas em responsabilidade civil, em virtude de sentença transitada em julgado14. Outro aspecto a ser enfocado é que, ao equiparar-se o débito oriundo de uma sentença da Corte Interamericana a débito de ordem alimentícia, avulta o caráter individual e não coletivo do direito à tutela jurisdicional, cuja prestação jurisdicional será devida, portanto, somente àqueles que efetivamente aderiram à causa, consubstanciando o interesse processual, a necessidade da providência jurisdicional. Convém registrar, de outro prisma, que preocupado em fazer face aos aspectos pecuniários das sentenças prolatadas pela Corte Interamericana, o Brasil criou, por intermédio do Decreto 4.433 de 10/2002, a Comissão de Tutela dos Direitos Humanos, cuja principal atribuição é a de fiscalizar a dotação orçamentária interna para o pagamento das indenizações constantes das sentenças da Corte Interamericana às quais se submete.15. Ao cumprir-se, então, sentença internacional proferida pela Corte Interamericana, suspende-se o comando judicial interno como decorrência implícita do próprio ato brasileiro de adesão à jurisdição obrigatória da Corte Interamericana, cujo respaldo lhe é conferido explicitamente, dentre outros, pelo comando constitucional insculpido no art. 7º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da CF, em que o Brasil propugna pela formação de um tribunal internacional de direitos humanos, o que, certamente, o alinha ao posicionamento de que não se pode conceber a humanidade como sujeito de direito a partir da ótica do Estado; impõe-se, ao revés, reconhecer os limites do Estado a partir da ótica da humanidade.Brasília, julho de 2007.Luiz Afonso Costa de Medeiros,Advogado, Internacionalista