O Leão atiça a desigualdade

27 Dez 2007
A carga tributária brasileira é injusta e pesa mais no bolso dos pobres POR MÁRCIA PINHEIRO Esbravejar sobre o nível da carga tributária virou esporte nacional. Comemorou-se o fim da CPMF como se, repentinamente, a decisão do Senado tornasse a população mais rica porque deixará de pagar 0,38% sobre cada movimentação financeira. Não haverá tal efeito, porque é preciso compensar os 38 bilhões de reais repentinamente retirados do Orçamento da União. Há um evidente oportunismo nos discursos, que propositalmente escamoteiam a necessidade de rediscutir que país se deseja construir. Qualificar a arrecadação da Receita como monstruosa é um dos vários mitos simplistas a se tornar factóide, por envolver questões sensíveis aos custos das empresas e aos bolsos dos cidadãos. Números assustam, mas deveriam ser analisados. De janeiro a outubro, a Receita Federal arrecadou 484 bilhões de reais, um crescimento nominal de 14% sobre o mesmo período de 2006. Os críticos da voracidade do Leão esquecem-se de que o Brasil cresceu 5,2% nos três primeiros trimestres do ano. É evidente que o recolhimento aumentou. Além do mais, é preciso descontar a inflação. Segundo a Receita, houve ainda um esforço de cobrança de devedores, a recuperação de depósitos judiciais e maior lucratividade de setores como automotivo, financeiro, metalúrgico, entre tantos outros, que logicamente gerou mais recursos. Uma parte substantiva dos impostos volta de imediato para a sociedade, diz Leda Paulani, professora de Economia da Universidade de São Paulo (USP). O retorno se dá por meio do pagamento de aposentadorias, pensões e benefícios da receita previdenciária, cerca de um quarto de toda a arrecadação (tabela abaixo). "O viés liberal não faz as contas. Nem tudo se transforma em gasto governamental, em pagamento do funcionalismo ou em obras", diz a economista. "A carga não deveria subir mais, mas não é exorbitante", diz Francisco Luiz Lopreato, do Instituto de Economia da Unicamp. Como Leda, ele acentua que outra parcela generosa da arrecadação da União é devolvida a um estrato mais rico dos brasileiros, por meio dos juros que remuneram os fundos de investimento e os títulos públicos. Nas contas de Amir Khair, consultor e ex-secretário das Finanças do município de São Paulo, da carga tributária de 34,2%, em 2006, foram abatidos 6,8% em juro. O que a União teve em caixa, na verdade, foi 27,4% do Produto Interno Bruto (PIB) para custeio e investimento. E não os alardeados 40% sempre sacados da cartola dos que reclamam da carga. Outra suspeita, que Khair diz ser até ousada, repousa sobre o cálculo do PIB. Ele relembra que, quando neste ano o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mudou a estrutura da economia brasileira (de 1995 para 2000), houve um aumento de 12% da produção total do País. No mais, afirma, a economia informal gera valor adicionado, nunca totalmente captado pelas estatísticas. "Desconfio que o PIB seja de 20% a 30% superior ao valor oficial", afirma. Nessa hipótese, a reflexão sobre a carga tributária mudaria, porque todos os indicadores são sempre comparados ao produto formal, e talvez a arrecadação não seja tão feroz como aparenta. Não bastasse o truque dos números, há uma evidência incontestável. Bem ou mal, diz Lopreato, o Brasil tem um sistema de saúde e Previdência, uma rede de proteção social. Não há como retroceder, com a retirada desses direitos elementares. Por isso, outro mito é exigir que o governo corte gastos. "Quero ver quem vai amarrar o guizo no rabo do gato", afirma o economista. Porque, ao se retirar o custeio constitucional de pessoal, saúde e educação, resta podar investimentos em infra-estrutura e aplicações em esporte e cultura, por exemplo. Que existe a necessidade de uma reforma tributária, é consensual. Há privilégios saindo pelo ladrão, segundo Pedro Delarue Tolentino Filho, presidente do Sindicato Nacional dos Auditores-Fiscais da Receita Federal (Unafisco). Para ele, o ideal seria reforçar a tributação sobre o Imposto de Renda, as grandes fortunas e as heranças. "O sistema atual protege determinados estratos da sociedade há 500 anos", diz para bom entendedor. Isso sem contar a elisão fiscal (brechas na legislação), a sonegação e a economia informal. "Impossível dimensionar. Há cálculos de que, para cada 1 real pago à Receita, 1 real é sonegado", afirma Tolentino. O assustador é que, no Brasil, 70% dos impostos incidem sobre o consumo e apenas 30% sobre o patrimônio, diz o presidente do Unafisco. Nos países desenvolvidos, a relação é oposta: 60% sobre o patrimônio e 40% sobre o consumo. Em relação a porcentuais do PIB, Tolentino é cético. "Mesmo que tivéssemos uma carga de 100%, não dá para comparar países do Primeiro Mundo com os em desenvolvimento, porque há quase tudo por fazer nesses últimos", opina. Além disso, estudo do Unafisco comprova como a carga tributária no Brasil é perversa. Quem ganha até dois salários mínimos, por exemplo, gasta 45,8% da renda no pagamento de impostos indiretos, enquanto o peso para as famílias com renda superior a 30 salários mínimos corresponde a 16,4%. Leda, da USP, também enfatiza que a estrutura tributária de um país tem tudo a ver com a distribuição de renda. Segundo o Programa das Nações Unidas "para o Desenvolvimento (Pnud), o Indice Gini do Brasil é de 0,58 - quanto mais próximo de 1, mais desigual é a nação. No entanto, diz a professora, o medidor tem lá seus defeitos, por captar apenas a renda e não o patrimônio. Estudos recentes, mais sofisticados, mostram que, mesmo no interior do estado de São Paulo, região mais rica do País, há cidades cujo índice é de 0,90. Trocando em miúdos, é quase como se somente uma pessoa detivesse toda a riqueza local. Sobretudo a classe média do tipo "cansei" empenha-se em reclamar dos impostos. A teoria econômica diz que existem duas formas de o governo fazer caixa para investir: por meio do recolhimento de tributos ou contratação de dívida, com a emissão de títulos, para quitação no futuro. A dívida interna brasileira é monstruosa, cerca de 1,2 trilhão de reais, muito em razão da política monetária do Banco Central, que força o Tesouro a recolher os reais que sobram no sistema, quando a enxurrada de dólares é trocada pela moeda nativa. Ou seja, tributos são imprescindíveis. Um passeio pela carga tributária de outros países, em diferentes estágios de desenvolvimento, desmente outro mito. O da suposta fúria do Leão sobre a renda do cidadão brasileiro (quadro abaixo). A alíquota para pessoas físicas, aqui, vai de zero a 27,5%. Na Argentina, de 9% a 35%. Nos Estados Unidos, de zero a 35%, fora os impostos estaduais. Na França, varia de 5,5% a 40%. Outra métrica, de acordo com o Unafisco: comparativamente ao padrão internacional, o imposto nativo sobre a renda tem uma baixa participação no total das receitas tributárias de apenas 6,6% do PIB, enquanto a média dos países europeus é de 13,6%. Além disso, no Brasil há apenas duas alíquotas, de 15% e 27,5%, enquanto nos EUA, por exemplo, existem cinco categorias, o que torna o imposto mais justo. Há ainda a brecha dos descontos permitidos na declaração do Imposto de Renda. Na opinião de Khair, seria preciso estabelecer um limite, por exemplo, para as despesas médicas, como ocorre no item educação. Na visão de Alexandre Mazza, professor de Direito Administrativo da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), uma reforma tributária deveria, em primeiro lugar, criar um sistema eficaz de arrecadação, de acordo com a capacidade de pagamento de cada cidadão, em busca da redistribuição de renda. Ou seja, taxar mais pesadamente as classes abastadas. Ele cita o Imposto sobre Heranças, pequeno, que nada mais faz do que a perpetuação do poder econômico nas mãos dos mesmos. Aqueles mesmos de há 500 anos. O sistema brasileiro é injusto porque se caracteriza pela regressividade, explica Leda, da USP. Em palavras simples, tem peso maior no bolso dos mais pobres do que no dos milionários e pune mais o setor produtivo do que os rentistas. Para reverter essa situação, seria necessário reduzir taxas como o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) e a Contribuição de Intervenção do Domínio Econômico (Cide). A compensação viria por meio do aumento de impostos sobre o capital e a renda. A economista cita especialmente o Imposto de Transmissão de Bens Imóveis (ITBI), conhecido por "inter vivos", e também o Imposto sobre Heranças. Contudo, a resistência é imensa e tem voz política. ""A discussão sobre o patrimônio é a primeira a ser derrubada em plenário, em qualquer tentativa de levar adiante a reforma tributária", afirma. Mais três benesses são concedidas aos endinheirados, diz Khair. Em primeiro lugar, apesar de contemplado na Constituição de 1988, o Imposto sobre Grandes Fortunas nunca foi regulamentado. No esboço de reforma, ocorrido em 2003, o economista, à época presidente da Associação Brasileira das Secretarias de Finanças das Capitais (Abrasf), conta que fez um duro trabalho no Congresso para convencer os parlamentares da necessidade da taxação. Em uma dessas tentativas, um senador afirmou a ele: "Isso não vai prosperar", e bateu a mão no bolso. Outro privilégio é o Imposto Territorial Rural (ITR), bastante tímido, "sob o pretexto de que não se deve tributar o campo, para não encarecer os alimentos". Para agravar o cenário, a Receita Federal não tem estrutura para fazer a fiscalização in loco nas fazendas. Por fim, os grandes sonegadores abrigam-se no Judiciário, diz Khair. "Uma execução fiscal leva anos e anos para ser resolvida." Não raro, quando a decisão sai, o devedor já fechou as portas, mudou de razão social ou lançou mão de outra manobra para não quitar os débitos. Já o mercado financeiro não tem do que reclamar, de acordo com estudos do Unafisco. Os mecanismos criados na legislação, após 1995, beneficiam a renda do capital. A remuneração dos juros de capital próprio permitiu que os cincos maiores bancos do sistema financeiro nacional, por exemplo, tivessem uma redução nas despesas com encargos tributários no montante de 2,1 bilhões de reais em 2005. Isso num ano em que o lucro líquido das instituições registrou um expressivo crescimento de 49,9%, para 18,8 bilhões de reais. Fora que os investidores estrangeiros são isentos de impostos quando adquirem títulos da dívida pública brasileira. No âmbito das empresas produtivas, o cenário é cabeludo. A partir da Constituição de 1988, o governo evitou aumentar a arrecadação por meio do Imposto de Renda e do IPI e forçou as alíquotas das contribuições sociais, como a CSLL, a Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins) e o fundo PIS/Pasep, resultante da unificação dos fundos constituídos com recursos do Programa de Integração Social e do Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público. Nada menos que 28% da arrecadação total da Receita de janeiro a outubro de 2007 veio dessas contribuições. "São impostos cumulativos, que incidem sobre toda a cadeia produtiva e prejudicam a indústria", diz Lopreato, da Unicamp. Para as empresas exportadoras, a confusão é geral, porque não é possível separar o que é imposto do valor da mercadoria. Outro nó é o Imposto sobre a Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), também de valor adicionado. Não funciona e acirra a guerra fiscal entre os estados, de tal modo que a Justiça está abarrotada de processos de exportadores que não são ressarcidos dos créditos a que teriam direito, pela Lei Kandir. Para Mazza, da PUC, as mais injustas das contribuições são a Cofins e o PIS, porque incidem sobre a receita bruta das empresas, mesmo que tenham prejuízo. ""A legislação, em vez de ajudar a companhia na recuperação, acaba por arrebentá-la", diz. O consultor do Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (Iedi), Júlio Sérgio Gomes de Almeida, concorda que os impostos indiretos, a encarecer os produtos e serviços, pesam em demasia sobre a economia. Mas destaca que, do ponto de vista da eficiência, a Receita Federal merece aplausos, pelo rigor na fiscalização recuperação dos débitos em atraso. Ele admite que o Imposto de Renda é baixo para os padrões internacionais. Mas teme que um aumento gere mais sonegação do que receita. Quanto à desejada reforma tributária, o economista é taxativo: o objetivo deveria ser modernizar o sistema e não emagrecer o Orçamento da União. "É fundamental reduzir o número de tributos e instituir, por exemplo, um não cumulativo, como o Imposto sobre Valor Agregado (IV A)", afirma. Toda a cascata de impostos foi criada por questões conjunturais, para cobrir buracos financeiros aqui e ali, e hoje torna o País não competitivo. "Há uma guerra fiscal global", afirma. Segundo ele, as palavras de ordem deveriam ser modernizar e tornar mais eficiente a arrecadação. Mas só isso não basta. Gomes de Almeida cita outras distorções. O custo do trabalho, por exemplo, é muito taxado no Brasil. Isso reduz a capacidade de expansão das empresas, quando não as induz à informalidade. Outro ponto é o peso dos impostos sobre os investimentos, como máquinas e equipamentos. "Em muitos países, há isenção, o que é sensato. Porque o calçadista acaba por ser sobre taxado quando vende sapatos", exemplifica. Por fim, há o câmbio supervalorizado. Outra história que, mais cedo do que tarde, terá de ser equacionada pelo governo federal.