A Estrutura da Administração Tributária e a Realidade do Estado Brasileiro.

Fonte Rogério Viola Coelho
01 Abr 2009
Lighthouse

O que me toca é falar mais sobre o contexto do que sobre o texto, ou seja, situar a questão deste processo que vive a Administração Tributária no panorama geral no movimento do Estado, do Estado em geral e, em particular, do Estado brasileiro.De inicio, vou adiantar o roteiro e os pontos que eu quero ferir: primeiro, procurar identificar as características gerais do Estado no ocidente, em sua atualidade; segundo, ver sua evolução nos estados periféricos, especialmente no Brasil, ao longo da segunda metade do século XX, e, partindo disso, ver a transição que se operou no Brasil com a redemocratização e que teve seu momento normativo na Constituição de 88; a seguir, terceiro aspecto que pretendo desenvolver, recuperar rapidamente as determinações do movimento de reforma do Estado, que se verificou a partir das décadas de 70 e 80,e que chegou ao Brasil na década de 90, procurando salientar a incidência desse processo na organização da administração pública; por último, quero entrar na questão da Administração Tributária e trazer, talvez, uma idéia para a reflexão sobre esse processo de construção de um discurso tendente a afirmar como uma carreira de Estado a carreira de Auditoria-Fiscal.O que caracteriza o Estado atual? Para abordar essa questão vou me basear em um texto de Esteves Araújo que, entendo, demonstra muito bem que nós passamos, da segunda metade do século XX para cá, por um período no qual se forma um tipo de Estado que se pode denominar de Estado neo-corporativo. E aí estamos falando do Estado real e não do Estado institucional. Estamos falando do modelo de Estado. O que seria o Estado neocorporativo? Ele se caracteriza pela proximidade do Estado e pela relação direta do Estado com segmentos sociais organizados. Esse assim chamado neo-corporativismo difere do corporativismo que apareceu na primeira metade do século XX, especialmente em países como a Itália e a Alemanha, onde a própria representação política era baseada e formada a partir das corporações, que elegiam representantes e participavam diretamente do poder. Agora, o Estado neocorporativo mantém a separação formal do Estado com a sociedade, mas o Estado passa a ter na sua atividade, na sua organização, vínculos de diálogo, vínculos de intersecção, de interpenetração com a sociedade, e isto se dá de uma maneira formal e de uma maneira informal, implica um processo formal e um processo informal. Como se dá no processo formal?  É o caso da instituição de conselhos de ordem consultiva e até deliberativa em que são convocadas representações dos agrupamentos sociais. E a expressão mais pronta disso são os processos de concertação social que os países europeus implementaram há bastante tempo. Também no Brasil dispomos de vários exemplos, como no caso do processo de abertura do comércio, que se inicia, na verdade, com Sarney, em cujo governo são criados conselhos para formular a política industrial, a política de comércio, competentes para formular e inclusive deliberar sobre os rumos da política do Estado. Esses conselhos formulam, esses conselhos deliberam, esses conselhos assessoram o Estado. Nós temos recentemente no Brasil um conselho que é típico, o Conselho Econômico de Política Social, criado no primeiro mandato do atual governo, instituído com função consultiva, vinculado à Presidência da República e composto por representações da sociedade, de diversos agrupamentos sociais, categorias e classes. Nesse conselho, contudo, se evidenciou uma característica da experiência brasileira, a assimetria na representação. No formato atual do CEPS, há uma participação mínima dos representantes dos agrupamentos sociais ligados ao trabalho. Os vários segmentos empresariais têm absoluta predominância nesse conselho. De qualquer modo, a maneira formal de participação das corporações no Estado calca-se nesse tipo de mecanismo. Mas tem a informal, indicada com muita propriedade neste mesmo texto do Esteves que antes mencionei. Isto se dá exatamente nos estamentos superiores da administração, que são nomeados discricionariamente pelo poder político, pelo governo, e formam, exatamente, os bolsões da tecnocracia - e esta é uma característica que aparece na experiência dos países do primeiro mundo também, não é específica do Brasil. No âmbito informal, como se dá essa interação? O que caracteriza a interação e a participação informais das corporações no Estado é a migração de pessoas, é o fluxo de elementos que compõem a tecnocracia do aparelho estatal e que migram habitualmente para o mundo privado. Ou, alternativamente, originados no mundo privado, integrantes dos grandes quadros das empresas privadas, são convocados para postos-chave na administração pública. Eles vão e voltam, circulam sem embaraço entre as esferas pública e privada, e terminam sendo intocáveis. Por adquirirem uma espécie de blindagem, eles sobrevivem aos governos. Sua resistência deriva do fato de estarem incrustados nas linhas de força que regulam as relações do próprio Estado com a Sociedade Civil, portanto num nível de determinação superior ao que rege a formação dos governos, em que a componente conjuntural e a exigência de formação de base de sustentação política exercem maior influência.  É Isto que temos no Ministério da Fazenda e na Receita, e, também, de forma muito acentuada, no Banco Central. A apropriação do núcleo estratégico do Estado por grupos de interesse imunes ao regramento geral de constituição da burocracia estatal chega a formar, nos casos mais avançados, um estamento tipicamente dinástico, provida de estratégias reprodutivas de alta eficácia, indutoras de um elevado grau de continuísmo.A assimetria significa a acentuada diferença de participação nas decisões de Estado das camadas dominantes em relação ao mundo do trabalho.  Não é uma coisa recente, já foi denunciado pelo próprio Weber, que no livro “Governo e Parlamento“, mostra como este estamento que se forma por livre nomeação do governo tende a se descolar, a tornar-se independente, e o governo, na verdade, acaba se deslocando para este estamento. Weber, inclusive, propõe uma alternativa a este movimento, retomada na década de 70 nos Estados Unidos, na qual assinala ser preferível a interferência dos partidos na escolha dos integrantes deste estamento, de modo que ao atribuir ao parlamento a capacidade de intervir na formação da tecnocracia estatal, submete-a a um controle público. Weber sugere, então, que ao invés de ser informal, que seja formalizado, que se aproxime a administração do parlamento, que haja uma aproximação e um controle direto do parlamento sobre a administração, com critérios formais de indicação desses agentes do Estado. Na história norte-americana, a adoção desse mecanismo, na década de 70, redundou num deslocamento do eixo ao redor do qual a administração gira e que a colocou mais diretamente ligada ao parlamento. Toda a nomeação do executivo necessita ser aprovada pelo parlamento, a começar pelos próprios Ministros e Secretários de Estado. A obtenção da aprovação do parlamento é critério para a validação da formação do governo.Vou retomar, agora, a questão da evolução do estado periférico até chegarmos ao momento atual no Brasil. O ponto de partida está situado nos estados autoritários que se formaram no início do século passado, segundo um modelo que Odonel denominou de Estado burocrático-autoritário. Nesta temática, também Fernando Henrique tem uma contribuição importante para análise, o primeiro Fernando Henrique tem uma contribuição bastante importante para a análise desse Estado burocrático-autoritário. E por que é importante retomar esse ponto na evolução no Brasil? Porque eu quero mostrar, e isto também é evidenciado por esses estudiosos, especialmente Odonel, pois o primeiro Fernando Henrique não existe mais, o que se designou como continuidades pós-redemocratização. Odonel diz, inclusive, que esse processo de redemocratização tem duas etapas. Uma primeira vai até a livre eleição formal dos dirigentes e a segunda etapa é a de avanço sobre as instituições, de revisão das instituições. Vejam, por exemplo, no Brasil o problema da reforma eleitoral, porque nós temos uma representação deformada, de elevada concentração de poder no executivo, que não expressa uma ordem republicana.Então, eu queria partir da característica do Estado burocrático-autoritário, que segundo os autores mencionados manifesta-se na alta concentração de poder no executivo, no esvaziamento do parlamento, na alteração da ordem jurídica, no controle e exclusão dos agrupamentos e das classes sociais dominadas - é uma exclusão do processo político e um controle que se verificou aqui no Brasil na capacidade de intervir e anular completamente os sindicatos. O interessante é a caracterização das frações hegemônicas e qual o sentido desse processo? Odonel chega a dizer que houve uma segunda revolução burguesa, uma segunda revolução capitalista, e o Fernando Henrique, embora não diga com as mesmas letras, acentua que houve uma mudança em toda a ordem jurídica. Mas Fernando Henrique, que utilizava as categorias marxianas, dizia, num artigo de 75, que tinha que identificar nesse regime, no regime militar, quais eram, dentre as classes dominantes, as frações hegemônicas que tinham empolgado o poder. E identificava como frações hegemônicas o grande capital oligopolista, estrangeiro, predominantemente, mas também o nacional. O Odonel diz que era fundamentalmente o estrangeiro. Qual era o propósito, o projeto deste regime?  Tinha o projeto de retomar o desenvolvimento e fazer a industrialização acelerada por intermédio da criação de estímulos e vantagens para o grande capital se instalar no país. Secundariamente ficou associado, diz Fernando Henrique, um segmento que representava a burocracia estatal, a burocracia do Estado que defendeu e teve espaço para construir as grandes empresas públicas. Secundariamente se beneficiou a burguesia nacional que tomou parte nas empreitadas e nos trabalhos de construção da infra-estrutura.Pois bem, quais os pontos de continuidade identificados especialmente por Odonel? É uma característica que Fernando Henrique apresenta da melhor forma e que vale a pena a gente acentuar, característica que diz de uma espécie de pacto tácito estabelecido pelo qual a economia se descola do poder presidencial e ganha uma autonomia relativa. A gestão da economia se descola parcialmente do Estado, que se torna, então, uma espécie de organismo bicéfalo. O presidente se coloca como mero poder moderador nas decisões da economia, e o Ministério da Economia é entregue às forças econômicas. São os grupos econômicos organizados que detêm a gestão da economia. E Fernando Henrique chega a dizer que por esta forma também são estabelecidos os anéis burocráticos de participação cruzada entre as esferas pública e privada e é aí que começa a se delinear a tecnocracia tal qual a conhecemos atualmente, acentuando que as empresas privadas cedem quadros estratégicos para formular as políticas públicas e tem início a consolidação do estamento tecnocrático, principalmente na área de economia.Pois bem, na transição, o que ocorre? A primeira característica tem a ver com a separação entre as gestões política e econômica, o que no Brasil, hoje, é absolutamente claro. Segundo, foi ceifada a camada mais alta da burocracia para colocar no seu lugar a tecnocracia. A fórmula jurídica adotada para a obtenção desse resultado foi a da ampliação dos cargos de confiança. É pela ampliação dos CC que a tecnocracia se instala no poder. Aparentemente, esses CC são de indicação livre do Presidente da República ou do Ministério, mas na realidade esses CC representam aquela parcela que participa das negociações informais da interação das corporações na gestão do Estado. Num Estado assim reestruturado, aquela burocracia formada em seu próprio seio, gestores e administradores formados pelo Estado e que chegavam a esses postos a partir de suas carreiras, é eliminada. E o Estado passa, inclusive, a encomendar seu planejamento de grandes empresas de consultoria da iniciativa privada, num movimento que tem início lá no regime militar. Essas características se mantêm até a atualidade.Bom, a hipertrofia do executivo, resultante da avocação do poder de legislar plasmada no emprego generalizado do Decreto-Lei, vem redundar na anulação do Parlamento, numa efetiva subversão do Poder Legislativo. A alteração da representação ferindo o princípio republicano, deformação que se perenizou no sistema político do país, mantida até hoje, também é característica dessa reestruturação do Estado assentada em bases burocrático-autoritárias, conforme salienta Odonel. A propósito, eu gostaria de rever com vocês como é que se dá a transição para o modelo autoritário nos embates da constituinte. Tem uma expressão, um comentário, que para mim é uma grande síntese do que foi o processo de institucionalização.  Todos devem estar lembrados que na Constituinte, ao se aproximar a fase terminal dos debates, a fase de contagem regressiva para a conclusão dos trabalhos, havia avanço diário na negociação direta entre, de um lado, a bancada que representava o movimento popular e democrático e, de outro lado, a bancada chamada de “centrão”, que representava o conservadorismo e a direita. E o Paulo Paim saiu-se com essa síntese sobre o processo de finalização do projeto da Constituição: “a gente sentava e discutia, discutia, e só se chegava a um acordo sobre o texto, só havia concordância do “centrão”, quando o dispositivo expressava-se em uma fórmula sob a qual a norma ficava suficientemente ambígua para deixar a definição de seu conteúdo verdadeiro para um momento posterior, para a disputa nas instituições do Estado, particularmente no Poder Judiciário”. E também o seguinte: “na verdade o “centrão” deixava a gente botar todos os direitos que queríamos e até instrumentos para fazer valer esses direitos, mas cerrava trincheiras na hora de formatar as organizações, as instituições do Estado“. O que significa isso? Na hora de definir as competências de cada instituição e de definir a composição e o processo de provimento dessas instituições do Estado, nessa hora o “centrão” não transigia, nada cedia. Mirem-se no Judiciário. Foram mantidos os Ministros dos Tribunais Superiores que vinham do velho regime e, ainda mais, eles ficaram com seus mandatos vitalícios, sem alteração na regra de provimento, que permaneceu sendo a indicação unilateral do Presidente da República. Isso quando nós estávamos instituindo aqui uma Corte Constitucional, agora pelo modelo europeu, do neoconstitucionalismo, em que todos os Ministros do Tribunal Constitucional tinham mandato limitado, improrrogável, sem recondução. Na Espanha, por exemplo, era limitado em dez anos. E não era só o Presidente, o chefe do governo, que indicava. O parlamento indicava uma parte, eram várias indicações.Pois bem, era nessa arena que depois iria se decidir qual o verdadeiro sentido da norma constitucional. Exemplo típico do efeito disso vem a ser a questão do direito de greve. Esse direito nunca foi regulamentado e a decisão que todos conhecemos, exarada bem no começo do governo do Fernando Henrique, em 94, numa conjuntura de crescimento do movimento grevista, eles trouxeram para julgar o mandado de injunção, que tinha sido aforado para uma categoria que queria exercer o direito de greve e não conseguia; então, o julgamento é conhecido, assentou que realmente havia omissão do Legislativo, havia mora legislativa, e redundou no oficiamento do Legislativo, ofício que sentenciava dezenas de vezes, de formas diferentes, que, enquanto não fosse regulamentado, o direito de greve não podia ser exercido. Mais recentemente, o Supremo acolhe um mandado de injunção sobre a mesma matéria, e vejam o voto do Ministro Gilmar Ferreira Mendes: está na hora, temos que acolher esse mandado de injunção e dar-lhe provimento e adotar uma regulamentação provisória. Por quê? Porque as greves estão muito abundantes e é preciso dispor de uma forma eficaz de conter isso, de regular e de disciplinar isso aí. Então, essa é a instituição fundamental da democracia.Vou tratar agora das correntes de reforma do Estado.  Bom, vou apenas as nomear. Essa reforma do Estado que surge aqui com Bresser, no governo Fernando Henrique, ela surge há cerca de dez anos, e uma década antes nos países do primeiro mundo, no continente europeu, especialmente. E aí se formam duas correntes. Uma, absolutamente predominante, que a doutrina tem chamado de corrente neo-empresarial, porque suas características implicam, em última instância, na internalização pela administração pública dos parâmetros da administração privada e na externalização de serviços públicos e de fração do Estado, além da privatização de grandes empresas públicas.No continente europeu, dessas três determinações só avançou a privatização de serviços públicos. As outras alterações encontraram fortes resistências exatamente no movimento popular liderado pelas entidades sindicais. Lembrem-se daquelas grandes greves, principalmente na França, que paralisaram a nação para deter o avanço das reformas.Bom, como esse movimento de reforma do Estado se expressa no Brasil?  Bresser Pereira, ideólogo brasileiro da corrente neo-empresarial, propõe a instauração da administração gerencial. E a partir de que diagnóstico? Ele diz que o Brasil estava estagnado há quase vinte anos e essa crise nacional tinha raízes no Estado, que se tornara muito pesado e ineficiente. Para resolvê-la, requeria-se o desdobramento de três movimentos. Primeiro, a implantação de um programa acelerado de privatização. Foi feito. Segundo, a externalização de serviços públicos, sua concessão a organizações da iniciativa privada, que os explorariam sob a supervisão das agências reguladoras. E para os serviços próprios do Estado, terceiro movimento, ele propunha sua delegação para as agências executivas - esse era o projeto para a Receita Federal.  Trata-se, portanto, de um processo operante em duplo sentido, externalização de parcela do Estado, entregue diretamente aos agentes da esfera privada da economia, mas também, e simultaneamente, trata-se da internalização dos parâmetros da administração privada, sob o conceito de administração gerencial, ou seja, um tipo de administração que concentra no topo da hierarquia um poder marcadamente absoluto.Pois bem, justamente esse arranjo concentrado do poder no topo da organização está explícito, expresso sem disfarces, no projeto de Lei Orgânica proposto para a Receita Federal. Recentemente estive pesquisando os princípios de organização da administração pública e constatei que o princípio da hierarquia não consta na Magna Carta; não sei se repararam, mas o princípio da hierarquia não é um princípio constitucional. No entanto, o que está proposto nesse projeto de LOF da Receita, eu andei em busca disso, sustenta-se em sua totalidade na hierarquização da organização, ou seja, em algo que não está recepcionado pela Constituição Federal. Em que consiste, pensando bem, o princípio de hierarquia? Encontrei finalmente num livro de uma portuguesa, que é um livro muito bom, uma descrição pormenorizada do princípio da hierarquia. Primeiro, o pensamento tem um fluxo descendente, parte do topo e vem até a base. Segundo, opera um poder disciplinar acentuado que se concentra no topo da administração. Terceiro, o poder de avocação, o poder avocatório, que desconstitui a qualquer tempo as competências próprias de todos os níveis da organização. Quarto, a reserva do poder da iniciativa, de maneira que, lá na base, o operador precise sempre ser autorizado a agir, como, por exemplo, por intermédio de um mandado de autorização. Então, é a instituição do poder hierárquico completo, mas isto convivendo com a manutenção da tecnocracia. Aliás, se não me engano, existe uma proposta em curso para que se confira mandato para os CC do topo, o contingente migratório, aqueles mesmos que ora estão para lá, ora para cá, muito provavelmente mais para lá do que para cá, enfim, ora na esfera pública, ora na privada.Pois bem, o que o Esteves Araújo salienta é que nesse Estado hipertrofiado, paradoxalmente a planificação do trabalho terminou. Foi sendo modificada para se concentrar mais no topo, deixando de ser uma atividade comum a todos os estratos organizacionais, uma atividade à qual está convocado e implicado o conjunto dos servidores. As instâncias intermediárias não têm mais participação no esforço de planejamento, definição e priorização de metas, decisões sobre alocação dos recursos institucionais, incumbem-se, nesse Estado reformado, da mera reprodução da planificação que está no topo, mas essa transformação somente viabilizou-se através da tecnologia moderna. Sem essa revolução tecnológica, não se poderia sequer cogitar em determinar a agenda diária de um Auditor-Fiscal lotado numa alfândega, por exemplo, a partir do comando central de Brasília, e isso efetivamente se verifica.O que quero colocar, portanto, sobre a questão da Administração Tributária, assim contextualizado o movimento de reforma do estado, é que no momento, na conjuntura atual, a posição estratégica tem de ser a de procurar bloquear esse projeto. Nesse ponto, gostaria de chamar a atenção para um aspecto que julgo relevante, decorrente de uma percepção relacionada ao modo do inserção da categoria dos AFRFB na própria organização. É que a categoria pensa a administração a partir da carreira, a partir da função do Auditor-Fiscal, e as proposições que tem para a estruturação do órgão são, por assim dizer, pontuais. Legítimas e verdadeiras, mas pontuais, como essa proposição de fixação de lista tríplice para a escolha do titular da Receita. Não creio que as premissas admitidas pela categoria ao formular seu projeto para a organização da Receita Federal sejam suficientes para traçar um rumo viável para esse embate. Seria necessário maior elaboração da questão da estruturação do órgão, refletir mais e ter uma proposição mais abrangente, mais completa, para contrapor a essa que está em curso, que é da administração gerencial que se quer consolidar. É preciso entender do que se trata quando se busca afirmar a auditoria-fiscal como uma carreira de Estado, embora isso seja absolutamente procedente. É preciso, então, que se estabeleça a fundamentação para isso. E é isso que eu queria, então, colocar, que é preciso buscar uma fundamentação, um discurso de fundamentação dessa posição. Vou trazer um exemplo para vocês. Por contingência, tive que estudar a questão da autonomia da Universidade, da entrega à comunidade do poder de autonormação e autogoverno. A Universidade é reconhecida como uma comunidade e os docentes são membros dessa comunidade. Então, ela é uma comunidade de pessoas, ela não é um órgão do Estado, como, por exemplo, uma Autarquia revestida de uma natureza instrumental para realizar funções do Estado. Ela é uma comunidade de pessoas. Muito bem, e por que razão ela necessita ser autônoma? Qual é o fundamento para a autonomia?  O fundamento é a liberdade de ciência, a liberdade de pesquisa e a liberdade de ensino. A liberdade tem de ser assegurada ao membro dessa comunidade, que é o docente. O Poder Judiciário, por exemplo, também ele é autônomo, aliás, ele chega a ser um poder separado. Mais recentemente, o Ministério Público veio a ser um poder diferenciado, caracterizado, de forma similar, pela autonormação e autogestão. Pois bem, o que justificaria, então, o reconhecimento da carreira de auditoria-fiscal enquanto típica de Estado?  As proposições que temos construído visam ao reconhecimento do Auditor-Fiscal como um membro, um sujeito, e não como um mero órgão operativo, instrumental, e que, portanto, ele tem o dever de participar da gestão, começando por uma dessas fórmulas, como a indicação dos administradores por meio de lista tríplice. Fui encontrar isto num clássico do Direito Administrativo, do Merkel, que foi discípulo do Kersel. Preciso dizer para vocês, antes, que o princípio da imparcialidade - que eu fui buscar também - surge primeiro no judiciário e apenas posteriormente é importado pela administração. Isso começa na Inglaterra, depois se irradia para os Estados Unidos, e enfim para os outros países da Europa continental. O princípio da imparcialidade é vinculado à idéia de fazer justiça, E, depois, como é que ele evolui para chegar à administração? Primeiro, ele firmou-se como princípio moral, princípio ético que tinha que pautar a conduta dos integrantes da administração. A seguir, evoluiu e vingou como forma de impedir o domínio do governo sobre a administração, o império da estrutura do governo sobre a estrutura da administração, objetivando assegurar que a instituição Administração Pública pudesse ficar livre das ingerências do poder político, porque esse poder político era sempre a expressão de uma parte da sociedade que tinha suplantado outros setores feitos minoritários na disputa política. E a administração, contudo, tinha por princípio servir ao todo, não podia servir a esta parte apenas. A forma da imparcialidade, amparada no discurso correspondente, operou essa desvinculação entre governo e administração, e traduziu-se na institucionalização da autonomia relativa da estrutura da administração em relação à estrutura de governo. Isso foi assim em diversos países. No entanto, mesmo nos países do primeiro mundo houve um resíduo de ocupação política da administração que não foi eliminado e que está relacionado às indicações de cargos de confiança, que permanecem na alçada do poder político. Isso sobrou para o governo penetrar, para a estrutura de governo penetrar na estrutura da administração. Aqui no Brasil, outros trópicos, a estrutura de governo penetra até a base, porque até o último chefe de seção é cargo de confiança. Mas é interessante comparar, estou com a estatística aqui, o número de CC em alguns países. No Brasil, só no Governo Federal são 19 mil CC. Na Inglaterra são cerca de 300. Na França são 500. Na Espanha, como na Inglaterra, muda o governo, mas não estão disponíveis mais do que 300 cargos de confiança. E como são providos esses cargos, essa é a questão. Eles são providos de que forma? Existe processo seletivo interno, e os requisitos para participar do processo consistem na qualificação, títulos, principalmente, e na posição que o postulante ocupa na carreira. Para poder participar existe processo seletivo. Não estou dizendo que é generalizado, mas esta é a tendência. Pois bem, então, qual seria um fundamento para pensar a condição de autoridade de Estado do Auditor-Fiscal? Esse Merkel, ele compara a atividade do agente de administração, mas se aplica de uma forma perfeita e acabada ao Auditor-Fiscal, ele parece que estava pensando no Auditor-Fiscal da época, porque reparem no que ele diz: “o ato, a atividade, deste membro da administração é uma atividade de aplicação do direito, ele aplica o direito como o juiz“. Aplicar o direito significa, na metalinguagem dos juristas, dizer o direito. Jurisdictione, jurisdição. Então, o juiz diz o direito. Ele exerce a jurisdição. O Auditor-Fiscal, ele diz o direito. Ao fazer uma auditoria, ao lavrar o auto de infração, ao efetivar o lançamento, ele está dizendo o direito, e dizendo o direito está constituindo o crédito tributário. Portanto, ele está modificando, instituindo ou estabelecendo relações jurídicas. Tanto quanto o juiz ele aplica o direito. Qual seria a diferença? O juiz porque aplica o direito é que precisa ter e ser reconhecido como um membro do poder e gozar de plena autonomia e de todas as demais prerrogativas que nós conhecemos. No caso das atribuições exercidas pelos Auditores-Fiscais, instituindo ou alterando uma relação jurídica entre o Estado e o particular - vejam que depois segue-se a instauração de um processo administrativo, com direito ao contraditório e à ampla defesa do contribuinte, que, por fim, culmina com a decisão de um Tribunal, composto, igualmente, por Auditores-Fiscais - então, nessa aplicação do direito que vocês exercem que limitação apresenta em relação ao direito ditado por um juiz? É que o Auditor-Fiscal não tem poder para executar. Ele é um juiz de instrução. Mas ele é um juiz de instrução peculiar, um juiz de instrução que cria norma para o caso concreto. Se, em relação ao juiz, ele tem essa limitação de não poder executar, de outra parte ele tem uma liberdade que o juiz não tem. No judiciário vigora o chamado princípio do dispositivo, quer dizer, o juiz só pode agir se provocado frente a um conflito. Com o Auditor-Fiscal as coisas não se passam assim. Ele tem o poder da iniciativa, poder da iniciativa que, agora, esse projeto da Receita está procurando retirar. Na verdade já retirou através de portaria, mas com essa nova investida está querendo consolidar e oficializar.Pode-se questionar o seguinte: será que isso não é geral para todo o agente da administração? Vejamos. Numa delegacia, o que faz o delegado? Ele dirige a investigação e redige um relatório; ele não delibera, não assume a ação, não aplica o direito nem o diz. Suas conclusões são remetidas ao Judiciário e lá, sim, o direito é pronunciado e sua execução definida. O próprio Ministério Público, ele faz a investigação, instaura o inquérito público e se dirige, por fim, ao judiciário. Ele não aplica o direito, não tem essa competência. Porém, quando o Auditor-Fiscal aplica o direito a administração tem o poder, primeiro o poder de usar a força ante a resistência, e, segundo, ele gera, por via de regra, o cumprimento da obrigação tributária. A regra não é o recurso ao judiciário, a regra, aquilo que deve ser verificado ordinariamente, é o cumprimento. Essa parece-me uma analogia válida para a posição do Auditor-Fiscal. E aí, vejam o que ocorre na Universidade. O fundamento é a liberdade do docente. Disso decorre o poder de autonormação para garantir essa liberdade. Então, a autonomia da Universidade é um direito fundamental desse ente coletivo, mas é um direito fundamental instrumental. Ele existe para garantir um direito fundamental que é o direito de liberdade de pensamento, liberdade de ciência do docente. Se nós fizermos uma analogia entre a situação da Universidade e a situação da Auditoria-Fiscal, nós teremos que dizer que para garantir a autonomia para o exercício da jurisdição, que o Auditor Fiscal tem por missão institucional, será que esta instituição pode ficar estruturada segundo o princípio autocrático e dirigida pelo poder político, que é parcial, quando ela tem que ser imparcial, porque exerce a jurisdição?  Será que ela pode ficar entregue a esta estruturação autocrática? Então, é uma necessidade para assegurar a imparcialidade que deve presidir o exercício da jurisdição pelo Auditor-Fiscal, é uma necessidade que a organização tenha uma forma democrática, uma forma segundo a qual o Auditor-Fiscal seja um membro da instituição e não possa ser reduzido à mera condição de operador, operador teleguiado.Finalizo oferecendo-vos essa idéia para reflexão, que pelo menos percebam a insuficiência da mera afirmação da carreira de Auditoria-Fiscal como carreira típica de Estado, a insuficiência desse discurso para a fundamentação da proposição que interessa. Não basta só afirmar que é uma carreira de Estado, é preciso dizer por que é uma carreira de Estado.