Como os tentáculos de Eduardo Cunha estão sendo plantados na Receita Federal

Fonte Estado de S. Paulo
31 Out 2016
Lighthouse

Artigo de Marchezan Taveira, publicado no jornal Estado de São Paulo   Não é comum ver a pauta de um sindicato de servidores concursados coincidir com a de políticos sedentos por lotearem os cargos da máquina estatal. Isso é ainda menos provável quando o político em questão se chama Eduardo Cunha. Mas é precisamente esse raro fenômeno de alinhamento gravitacional de interesses que, nas últimas semanas, está eclipsando a Receita Federal. Não é de hoje que o Sindireceita, entidade que representa os analistas tributários, fomenta e difunde a ideia de que o órgão deveria sofrer uma intervenção externa, mediante indicação política para o seu cargo máximo – o de secretário. Um exemplo da argumentação sustentada pela entidade pode ser visto em uma entrevista dada em 2009 por Paulo Antenor, à época presidente do sindicato e atualmente primeiro suplente do senador Magno Malta. “A revelia de gostar ou não dos tucanos, há que se reconhecer que o melhor Secretário foi Everardo Maciel e foi na gestão de FHC que a Receita teve o melhor comando. E o pior Secretário da história da Receita era da Carreira Auditoria. Não é possível restringir assim, porque há muita gente competente na área tributária e que não está na Receita, como advogados, contadores e administradores. Colocar como ‘obrigatoriamente’ da Casa é tornar o Órgão e a sociedade reféns de interesses de servidores”. Há três meses, o governo enviou para a Câmara dos Deputados o Projeto de Lei 5864/16, que, além de dispor acerca da reestruturação salarial dos servidores da Receita Federal, tinha um propósito maior: instituir garantias adicionais e reforçar a segurança jurídica indispensável ao exercício do trabalho das autoridades do órgão, os auditores-fiscais, categoria que está na base das investigações da Operação Lava-Jato e que, por razões internas, não convive harmoniosamente com os analistas tributários. Ato contínuo, o Sindireceita deu início a uma verdadeira cruzada no Congresso Nacional, no intuito de “alertar” parlamentares a respeito dos supostos “riscos” da parte mais importante do projeto, acusando os auditores-fiscais de se arrogarem poderes abusivos e inconstitucionais. Curiosamente, tal “inconstitucionalidade” não foi percebida pela assessoria jurídica do Poder Executivo nem por nenhum dos ministros por quem o projeto passou antes de chegar ao Legislativo: três da Fazenda, três do Planejamento e três da Casa Civil, sob dois governos diferentes e ideologicamente opostos – Dilma Rousseff e Michel Temer. Numa sequência de manobras inexplicáveis, a relatoria do projeto foi parar nas mãos de Eduardo Cunha. Não dele propriamente, mas do deputado Wellington Roberto (PR/PB), o que, para quem conhece os meandros do Congresso Nacional, dá no mesmo. O parlamentar paraibano é até hoje um dos mais fiéis escudeiros do ex-presidente da Câmara, tendo permanecido com ele até o instante final: foi um dos dez que votaram contra a sua cassação. Pelos desdobramentos em torno do PL 5864/16, tudo indica, porém, que a fidelidade de Wellington Roberto ao seu guru sobreviveu ao episódio. O lema “até que a morte os separe” parece não se aplicar perfeitamente aos casos de morte política. Isso talvez seja explicado pelo fato de que, no submundo do poder, é prática dos mais espertos se fingirem de mortos. Na última semana, procuradores da Lava-Jato encontraram evidências de que, mesmo afastado, Eduardo Cunha continuava atuando por meio dos seus correligionários e estava barganhando a indicação de um apadrinhado para o cargo de secretário da Receita Federal, órgão que até o momento vinha se mantendo relativamente blindado de ingerências políticas. Atento às pretensões e aos ensinamentos de seu mestre, Wellington Roberto não decepcionou na função de relator do projeto da Receita: apresentou um substitutivo que desfigura e desorganiza de maneira tão brutal a instituição (foram incorporadas nada menos que 175 emendas num projeto que originalmente possuía 20 artigos) que a torna presa fácil de investidas subterrâneas e anti-republicanas. De quebra, suscitou um acirramento inédito entre os profissionais do órgão, ao conceder a mesma autoridade e as mesmas prerrogativas dos auditores-fiscais a servidores que prestaram concurso para outros cargos. Como, numa casa onde todo mundo é autoridade, na prática ninguém o é, o substitutivo implode os alicerces da Receita Federal, torna-o um órgão acéfalo e anômalo e, ainda, instaura uma crise de legitimidade sem precedentes na administração tributária. O projeto, que em sua versão original ampliava as garantias e a segurança jurídica necessária às atividades de fiscalização, termina, após as intervenções do relator, provocando exatamente o efeito inverso, fazendo ruir décadas de construção institucional. O sindicato dos analistas tem comemorado exaustivamente o texto de Wellington Roberto e acusa a administração da Receita de ofender princípios constitucionais ao defender o projeto de lei originário, tal como enviado pelo governo. O deputado paraibano, por sua vez, insiste em dizer que está apenas “fazendo justiça” e demonstrando “coerência”, mesma linha argumentativa com que justificou o seu voto pró-Cunha durante o processo de cassação. Enquanto isso, uma das instituições mais importantes e respeitadas do país vai se desintegrando entre forças obscuras internas e externas, cada dia mais próxima do destino que lhe foi traçado pelo ex-presidente da Câmara. *Marchezan Taveira é Auditor-Fiscal da Receita Federal e jornalista Link para o artigo no site de origem